sexta-feira, 31 de agosto de 2007

A Ilha de Fidel

por HÉLIO SCHWARTSMAN

Cuba se tornou uma espécie de museu do comunismo a céu aberto. O episódio dos boxeadores que quase desertaram durante os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro ilustra com perfeição as agruras do regime.

O simples fato de os atletas não poderem sair do país com suas famílias à hora que bem entenderem para viver --e trabalhar-- onde lhes pareça melhor já demonstra que há algo de muito errado por lá. No mais, algumas das "reflexiones del presidente Fidel Castro" sobre o caso evocam, ainda que com o tom farsesco típico da América Latina, os lúgubres processos de Moscou.

Não duvido de que os boxeadores Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara tenham mesmo manifestado às autoridades brasileiras o desejo de voltar para a ilha. É patente, porém, que haviam antes planejado desertar, a ponto de requererem vistos para a Alemanha. Mesmo assim, só o que censuro ao Ministério da Justiça é a celeridade que imprimiu à operação de repatriamento, que contrasta com outros casos.

Embora alguns lapidares do governo de Luiz Inácio Lula da Silva ainda insistam em descrever Cuba como uma democracia popular, não há muita dúvida de que aquilo seja uma ditadura, ainda que não das mais selvagens. E um Estado que zela pelo respeito aos direitos humanos como deveria ser o Brasil precisa agir com certa cautela antes de devolver a um regime autoritário pessoas que ousaram desafiá-lo.

Nesse contexto, teria sido recomendável manter os cubanos por aqui por mais uma ou duas semanas. Vale lembrar que eles entraram legalmente no país e, até onde se sabe, não cometeram nenhum delito. Não havia nenhuma razão para mantê-los sob vigilância, situação a que foram confinados desde a sua detenção, na quinta-feira retrasada, até a volta para Havana, no sábado.

Se tivessem mais tempo para pensar (e curar a ressaca), talvez os cubanos tivessem tomado outra decisão. Não é necessário título de especialista em teoria dos jogos para constatar que eles fizeram as piores escolhas possíveis. Quando optaram por desertar, abriram mão de estar com a família para praticar boxe no Ocidente e, supostamente, ganhar bastante dinheiro. Quando decidiram voltar, sacrificaram o "sonho capitalista" para abraçar a certeza de uma condição muito pior para si mesmos e seus próximos. Basicamente, tudo o que conseguiram foi alguns dias de farra com garotas de programa no norte fluminense e, de volta a Cuba, trocar os privilégios que tinham como atletas de renome internacional pelas atribulações da vida de cortadores de cana ou de algum outro "trabalho digno" que Fidel disse que lhes dará após proibi-los de lutar.

É verdade que tomar repetidas pancadas na cabeça, como ocorre a boxeadores, prejudica o raciocínio, mas, se tivessem tido a oportunidade de conversar com representantes de instituições independentes como a Anistia Internacional ou o America's Watch, Rigondeaux e Lara poderiam ter se saído menos mal de suas desventuras.

Minha hipótese favorita, que não tenho como provar, é que o regime cubano fez ameaças abertas ou veladas às famílias dos lutadores, que acabaram optando pelo retorno. Esse é um expediente clássico de ditaduras, e ditaduras gostam de operar com clichês --é uma forma eficiente de insinuar as coisas sem necessitar explicitá-las.

Dar mais tempo para os cubanos teria no mínimo poupado às autoridades brasileiras o dissabor de ser acusadas de atuar a soldo de Fidel Castro.

Espero que o leitor não me interprete mal. Não sou um daqueles fanáticos anticubanos, mas, ao contrário de alguns dirigentes petistas, também não costumo sacrificar fatos para ficar com as interpretações que mais me agradam.

Se Cuba não fosse uma ditadura, os boxeadores nem precisariam ter se dado ao trabalho de bolar uma fuga. Daí não se segue que estejamos diante de um regime tão sanguinário como o de Saddam Hussein ou de alguns tiranetes africanos. Rigondeaux e Lara deverão comer o pão que o diabo amassou, mas é improvável que venham a ser torturados ou fuzilados. Daqui a alguns anos, talvez até possam voltar a lutar ou treinar jovens.

Só que o fato de o regime cubano não ser especialmente homicida não basta para justificar seu autoritarismo, mormente porque ele é totalmente desnecessário no que diz respeito aos dois ou três sucessos que a revolução cubana logrou obter.

Por mais que deploremos as práticas de Fidel, é forçoso reconhecer que ele fez um bom trabalho em saúde e educação. É claro que a Universidade de La Habana não compete com Harvard ou Oxford, mas praticamente todos os cubanos sabem ler e escrever e freqüentaram a escola básica, o que não é regra no Caribe e mesmo em algumas nações bem mais ricas. Já no campo sanitário, os indicadores básicos de Cuba, se não muito manipulados, são melhores até que o de algumas regiões dos EUA. O segredo é basicamente prevenção e atendimento primário. A coisa muda um pouco de figura quando se chega a casos de alta complexidade como um câncer ou uma doença coronariana avançada, hipótese em que é melhor estar nas mãos de um médico capitalista americano. Só que conseguir essas notáveis realizações de modo algum implica manter boxeadores ou escritores contra sua vontade no país.

O curioso aqui é que Cuba se conserva um museu socialista, com seus muitos vícios e poucas virtudes, graças aos esforços dos EUA para que deixe de sê-lo. É que, por uma série de razões históricas as quais vou apenas tangenciar, o relacionamento EUA-Cuba assumiu uma dinâmica que confere um peso desproporcional às diferenças ideológicas entre os dois regimes.

Vale lembrar que, de início, Fidel Castro não era um líder marxista. Após derrubar a ditadura pró-americana de Fulgencio Batista, em 1959, Fidel não tinha planos de instalar o comunismo. Foi a acentuada pressão de Washington para depor Fidel que o acabou empurrando para os braços da então existente União Soviética. A aproximação entre Havana e Moscou reforçou ainda mais as desconfianças dos EUA, que foram se tornando cada vez mais violentamente anticastristas, e vice-versa. A relação entre os países acabou ficando pessoal demais, a ponto de a CIA ter tentado assassinar Castro várias dezenas de vezes, sempre sem sucesso, como provam os 80 anos do ditador.

O surpreendente é que as desavenças sobreviveram à queda de Berlim e à própria extinção da URSS. Cuba, é certo, penou barbaramente depois que deixou de receber a mesada de Moscou. Os EUA, entretanto, em parte por força do lobby de exilados cubanos na Flórida, em vez de aproveitar a situação para desideologizar a relação, mantiveram e até reforçaram o embargo à ilha de Fidel, renunciando assim à mais eficiente das armas para combater o comunismo: despejar dinheiro até que a tal da sociedade sem classes dê lugar ao velho capitalismo. Tal estratégia funcionou à perfeição na China, que, nominalmente, segue comunista sem ser incomodada por ninguém.

Fidel foi encontrando meandros pelos quais sobreviver. Ergueu, com auxílio do capitalismo europeu e canadense, ao qual parece fazer menos restrições, uma infra-estrutura turística que não é plenamente explorada porque cidadãos norte-americanos não podem passar suas férias em Varadero. Também permitiu que seus odiados compatriotas de Miami mandassem dólares para os familiares que ficaram em Cuba. Remessas externas e turismo já são a principais fontes de renda de Cuba.

É uma questão de tempo até que Fidel e seus sucessores desapareçam. Museus da história não costumam durar para sempre. Enquanto isso não acontece, teremos ocasionais shows como o protagonizado pelos pugilistas cubanos, os quais servem para nos lembrar de que, por melhores que sejam a educação e a saúde cubanas, o ser humano é, como já sugerira Schopenhauer, uma máquina de desejar que não pode ser desligada. Mesmo que o socialismo fosse capaz de nos dar tudo aquilo de que temos necessidade objetiva, ainda assim muitos de nós arriscariam tudo pelo direito de querer mais. O grande erro do marxismo foi deixar de ver esse traço tão distintivo quanto irracional da natureza humana. [Pensata 16/8/07]

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