domingo, 2 de setembro de 2007

Apartheid Escolar

É preciso acabar com o Apartheid escolar no Brasil

Por Gilmara Gil

"A coisa mais bonita do mundo é que as pessoas não são iguais, estão sempre mudando e ainda não foram terminadas." Os versos do escritor Guimarães Rosa, além de traduzirem um sentimento poético sobre as mais variadas situações, se encaixam para definir igualdade, diversidade, preconceito e, por que não, desigualdade. A palavra desigualdade, por exemplo, está presente no pensamento da consultora do Inep/MEC, Renísia Garcia Filice, que acabou de concluir um trabalho sobre o negro na educação brasileira que, no momento, está no Conselho Editorial da Secad, para futura publicação.
O estudo "Identidade fragmentada: Um estudo sobre a História do Negro na Educação Brasileira. 1993-2005", realizado para o MEC/lnep, revela, entre outros dados, que as políticas públicas não atuam com eficácia no combate às desigualdades raciais. " É preciso garanti r não só a presença, como principalmente, relações mais adequadas de
tratamento para brancos e negros", justifica Renísia Filice.
A pesquisadora adianta que os dados sinalizam que há uma estreita relação entre baixo rendimento escolar e discriminação racial. E que os negros, embora estejam sobressaindo em relação à taxa de eficiência, têm sua situação de desigualdade, no geral, inalterada.
O texto, com documentação produzida pelo Inep e pelo Pnad/IBGE, busca fornecer parâmetros que ampliem o debate acerca da participação do negro no sistema educacional brasileiro, da Educação Básica ao Ensino Superior. O conteúdo faz uma análise de como esta participação dialoga com sua inserção na estrutura sócio ocupacional do país. Ao aquecer o debate contra a discriminação racial, Renísia salienta a necessidade de análises mais qualitativas acerca das relações étnico-raciais que envolvem brancos e negros no interior das instituições de ensino brasileiras. Segundo ela, os dados refletem sobre a qualidade na educação, acesso e combate a disparidades raciais, económicas

e sociais, e a busca pela equidade regional. Apesar dos recentes avanços nos indicadores quantitativos, em termos qualitativos ainda são nítidos os sinais de discriminação sobre as populações negras. "A falta* de equidade no tratamento com crianças brancas e negras no espaço escolar é um dos fatores mais graves, pois interfere no rendimento do aluno negro", frisa a pesquisadora.


Conforme explica, nota-se que em situações de maior penúria económica, brancos e negros se aproximam mais. Na escola, em termos de rendimento; no trabalho, em termos dos baixos salários. À medida que aumenta o nível socioeconômico dos envolvidos e a qualidade da estrutura educacional ofertada, o tratamento discriminatório contra negros não regride. Muito embora, no ensino fundamental e no ensino médio, os negros tenham ampliado seu rendimento escolar, este não foi suficiente para reduzir a barreira que os separa, há mais de três gerações, dos auto-identificados brancos.
Combate ao racismo
O estudo mostra ainda que o quadro não muda em relação à distribuição salarial e aos postos de serviços ocupados. "Os auto-identificados negros permanecem, invariavelmente, em desvantagem", salienta Renísia. Outro dado relevante indica que quase 50% da população autodeclarada negra tem sido preterida, quando se apresentam apenas políticas universalistas que não atentam para a especificidade do processo histórico que torna o homem negro, com toda a carga de luta e discriminação que esta palavra carrega, socialmente localizado. "Em se tratando de atuar com eficácia no combate às desigualdades raciais, é preciso haver políticas de ações afirmativas específicas para as populações negras, no sentido de impedir a perpetuação dessadisparidade entre brancos e negros, nas próximas gerações", destaca a consultora.Segundo Renísia, considerar o enfoque da temática ético-racial na análise dos dados signifíca, dentre outras coisas, um avanço na ruptura do mito da democracía racial que ainda vigora no país e sustenta a “invisibilidade” social que envolve as populações negras.
Números da desigualdade racial no sistema educacional
Analfabetismo:
populações preta (16,9%); parda (16,8%), o dobro das populações brancas (7,1%). (IBGE, 2003).
> Ensino Fundamental: na 4a e 8a séries do ensino fundamental, o grupo onde se verifica a maior proporção de alunos repetentes é o dos alunos que se declaram negros.
^ Ensino Médio: o Enem 2005 registra a maior participação de auto-identificados
negros: brancos (45,2%), negros (49,7%), amarelos (3,3%) e indígenas (0,8%). No ranking em relação à nota média das redações e provas objetivas: em primeiro, brancos, depois, os amarelos, seguidos de negros, e, por último, os indígenas.
>• Ensino Superior: a presença das populações negras é a menor de todas as etapas educacionais. Na pós-graduação, por exemplo, o índice de participação dos negros era de 18,5%, enquanto os brancos somavam 81,5% do total (IBGE, 2002).




Desigualdade racial
interfere no rendimento escolar
A verdade é uma só. Existe, sim, discriminação racial na escola. E estas diferenças entre negros e brancos no sistema educacional apresentam causas e efeitos duradouros no curso da vida, aponta o pesquisador do Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea) Sergei Soares, que organizou a obra "Os mecanismos de discriminação racial nas escolas brasileiras", recém-lançada pelo Instituto. "Os estudos realizados nos últimos dez anos indicam, com clareza, a centralidade da discriminação no sistema educacional como fator de reprodução de desigualdades raciais, o que faz com que ações nesse campo ocupem lugar primordial no combate ao racismo, tal como evidenciado pela política de cotas de ensino superior
e pelo debate que esta vem provocando na sociedade", afirma Sergei.
Na sua opinião — embora a dureza da
discriminação contra milhões de negros faça com que seja urgente a necessidade de respostas por parte do poder público — uma melhor compreensão da forma como são produzidas e reproduzidas as desigualdades raciais no sistema educacional é
fundamental para o desenho de políticas eficazes para o seu combate. Aliás, esta discussão é a que norteia a abordagem dos seis capítulos do livro, que traz a contribuição de outros três estudos sobre o problema. "Buscamos compreender em que momentos e espaços do processo educativo a
discriminação é mais aguda e "Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo é um desafio enfrentado pêlos negros e pêlos negros brasileiros", afirma a pesquisadora. Para ela, os órgãos institucionais, por formularem políticas públicas, têm a responsabilidade social e educativa de compreender, principalmente na escola, esta complexidade.
"Este é um trabalho que diz respeito a toda a sociedade, e ao poder público em todos os âmbitos, federal, estadual e municipal", conclui.
Renísia explica que o estudo buscou percorrer algumas das possíveis trilhas que definiram "o lugar do negro" no Brasil, do Brasil Colónia até a atualidade, trançado um perfil atualizado da relação entre racismo, baixo o rendimento escolar e pobreza.
reciso combater, com urgência, racismo institucionalizado que se instaurou no Brasil. e é o fato: os negros têm avançado, mas continuam em posição inferior ao branco, seja no espaço educacional, seja no mercado de trabalho.
Conhecer a história da educação do negro significa, dentre outras coisas, a necessidade de adentrar nesses diferentes tipos de escolarização e educação, como espaços de construção da cidadania e fonte de conscientização da origem afro-brasileira. Conseqüentemente, a invisibilidade social é "desnaturalizada", fazendo emergirem as diferenças nas formas de tratamento, a desigualdade racial e social.

Educar para a diversidade significa a busca da equidade no tratamento para brancos e negros.
Mudança de paradigma*

.
“Quais são as formas que ela toma por intermédio de dados e técnicas estatísticas disponíveis”, enfatiza o pesquisador.
As pesquisas tratam tanto do nível educacional alcançado como do conteúdo efetivamente aprendido, ou seja, foram investigadas as diferenças raciais na quantidade e na qualidade da educação. Segundo os autores, inúmeros estudos mostram que o sistema educacional, além de ser incapaz de compensar as diferenças de origem socioeconômica, acrescenta outras distorções, fazendo com que as mesmas sejam intensas ao longo da jornada escolar entre estudantes negros e brancos.
Para Sergei Soares, ao entrarem no mercado de trabalho, no qual a posição social das pessoas se consolida, os negros são prejudicados pela sua diferença educacional em relação aos brancos. "A diferença faz com que tenham maior chance de serem encontrados nas ocupações de trabalhos manuais de baixa qualificação e remuneração, e mesmo entre estas, desempenhando tarefas de menor prestígio", sentencia.
Estudos realizados por países como Inglaterra, França e Estados Unidos reforçam a tese de que as classes sociais se associam claramente ao desempenho escolar. O acesso aos níveis mais elevados de ensino é mais fácil para pessoas mais
ricas do que para as mais pobres. Nos Estados Unidos, pesquisadores deram especial atenção às diferenças étnicas de desempenho e às tendências históricas relativas ao problema, e concluíram que "toda redução das diferenças de grupo no alto da distribuição de desempenho é devida às mudanças relativas às classes sociais".
Segundo Sergei, esse tipo de diferença social é particularmente importante no caso do Brasil por várias razões, entre as quais, cita duas como sendo as principais: a nossa história de escravidão e a imagem que fazemos de nós mesmos como povo. "Houve uma tendência a se considerar as diferenças raciais menos importantes que as diferenças económicas", acrescenta.
Outra contribuição importante para o esclarecimento e para aumentar o debate sobre a discriminação racial na escola é o livro "Inclusão Étnica e Racial", do professor José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB). A obra faz uma retrospectiva sobre a questão da exclusão racial no Brasil e mostra, de uma forma aprofundada, por que nossas universidades têm poucos negros.
Segundo o antropólogo, ele próprio resolveu contar o número de professores negros na UnB e constatou que em duas décadas de ensino no curso de antropologia não havia entrado nenhum aluno negro. "Se o número de estudantes negros na graduação é baixo, na pós-graduação é muito menor." De acordo com o levantamento, ele encontrou 15 professores negros de um total de l .500, o que representa 1% do quadro de docentes. Nas 12 universidades em que promoveu a pesquisa, em São Paulo, a porcentagem de negros foi a menor do universo pesquisado. "Considerando às demais — seis são as mais importantes do país (USP, Unicamp, UFRJ, UFMG, UFRGS e Unb), o índice chegou a 0,4% de professores negros. Numa população de 45% de negros, isso não tem paralelo no mundo", ressalta Jorge de Carvalho.
Para o pesquisador, o problema é grave e a saída para os estudantes negros e afrodescendentes é o ingresso via cotas. "Vivemos num país multirracial, mas ele não quer admitir que é. Ele não consegue dar conta da multirracialidade. É uma barreira muito profunda e os danos são imensos", conclui

matéria de capa
Projeto para combater o preconceito em sala de aula
O governo federal anunciou o início do projeto Género e Diversidade na Escola. Por meio dele, professores de 5a a 8a série das escolas públicas serão capacitados para combater o preconceito em sala de aula. A iniciativa visa a evitar atitudes preconceituosas em relação a mulheres, negros, índios, portadores de deficiência física, homossexuais e bissexuais. A primeira turma começou o treinamento em junho, com l ,2 mil educadores de seis cidades: Dourados (MS), Porto Velho (RO), Maringá (PR), Salvador (BA), Nova Iguaçu (RJ) e Niterói (RJ), por meio das prefeituras.Os governos estaduais também participarão do projeto-piloto. A partir de setembro, outros 30 mil professores vão passar pelo curso, que será levado para todo o país. A ação é uma parceria da » Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério da Educação e do Conselho Britânico no Brasil. O Reino Unido já incluiu a diversidade de género, raça e orientação sexual no ensino escolar. O investimento total é de R$ 723 mil, sendo R$ 603 mil provenientes do governo federal e R$ 120 mil do Conselho.
O governo federal arcará com todo o custo do projeto. Em contrapartida, os Estados deverão disponibilizar logística para a realização do curso, como laboratórios de informática. O ministro da Educação, Fernando Haddad, destacou que a iniciativa aprimora a formação cidadã dos alunos.
"Melhorar a educação é, sobretudo, melhorar a formação de professores e de alunos em torno de uma convivência pacífica, de uma convivência de respeito à pessoa humana na sua diversidade." A ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, afirmou que o projeto inova a metodologia de ensino brasileira: "Tratar os educadores, homens e mulheres, como cidadãos significa, sem dúvida, propor a eles alternativas ao que tem sido o ensino tradicional".

Aprendendo com a cor da pele
''O bom exemplo de uma educadora
Educadores como a professora Juceli Hack de Oliveira, que trabalha com crianças de 5 a 6 anos em Novo Hamburgo (RS), sabem na ponta do lápis que o preconceito existe na escola, principalmente contra o negro.
Foi uma situação de preconceito em sala de aula contra duas crianças negras que fez Juceli colocar em prática o projeto "A Mãe África e Seus Filhos Brasileiros: resgatando a cultura afro-brasileira", que lhe valeu uma homenagem especial do Prémio Professores do Brasil, iniciativa da Fundação Bunge e Fundação Orsa, em parceria com o Ministério da Educação, em 2005.
"Não gostei das atitudes de algumas crianças de uma turma de 23 alunos, que começaram a agredir verbalmente aqueles coleguinhas, chamando-os não pelo nome, mas pela cor da pele." Um dia, um menino enraivecido, na disputa de um brinquedo, provocou: "Me dá aqui, seu negro". Foi agota d'água para que a professora, com curso de pedagogia, colocasse
no papel uma iniciativa inédita na comunidade escolar do Vale do Sinos, considerada a região berço da colonização alemã no Rio Grande do Sul.
Juceli conta que ela recebeu críticas dos pais de alunos. "Eles me perguntaram se eu não tinha nada mais útil para ensinar às crianças do que a África. Mas depois entenderam e apoiaram a ideia", lembra.
O projeto da educadora é simples, porém surtiu o objetivo desejado. Com aulas ilustrativas e práticas, e a parceria da Associação de Pais da Escola, Juceli adquiriu instrumentos musicais, entre os quais, o berimbau e outros de percussão. Ela também mostrou o folclore africano por meio da capoeira, e as crianças, por meio de um processo educacional, passaram a respeitar as diferenças de cor. "Não podemos conviver com o preconceito, tampouco romantizar o problema", frisa a professora.
Poucos sabem, mas ensinar a História da África e da Cultura Afro-Brasileira é obrigatório em todas as escolas de ensino fundamental e médio. A lei, de número 10.639, foi sancionada pelo presidente Lula em 2003.
Sou Janaína Santos, tenho 18 anos e sou estudante universitária, curso Design na Escola Superior de Propaganda e Marketíng (ESPM), de Porto Alegre.
Preconceito existe em todos os lugares, sejamos negros ou não. Sofri discriminação racial quando eu tinha 6 anos, ao entrar para a escola. Estudava no Colégio Americano — de classe média alta — e as agressões aconteceram logo no começo. Por eu ser uma criança negra e estudar em uma escola tradicional, foi muito triste, mas segurei a barra até o final do ensino fundamental.
Agora que cresci e superei o problema, entendo que a discriminação contra o negro é uma realidade na vida escolar e que ela não vai acabar tão cedo, pois a sociedade em que vivemos é preconceituosa. Acredito que o racismo irá acabar quando o próprio negro deixar de ser preconceituoso com ele mesmo, e vencer como pessoa, que é capaz de construir uma imagem afirmativa na sociedade.

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